Por Fernanda Viana
Quem caminha pelos estreitos becos e vielas da favela não imagina as lutas firmadas pelos moradores da Maré, sobretudo pelas mulheres, para garantir as condições mínimas para se viver aqui.
Como mareense nata – nascida durante o carnaval quando minha mãe, que era passista, voltava do desfile do Mataram meu Gato[2]– carrego em minhas memórias a força das mulheres que vivem nesse lugar. Lembro de quando era criança e ouvia diversas vezes minha avó contar orgulhosa como tinha construído sua casa de alvenaria na Nova Holanda:“Era tudo água por aqui, foram oito caminhões de aterro que eu tive que jogar pra construir a casa”. Ela relembrava da época que morava na palafita, quando o assoalho da casa passava por cima d’água e de todo seu esforço na tentativa de garantir melhores condições de vida para a família. Desta época, guardo na lembrança a imagem das mulheres da família, acordando de madrugada para cortar os miúdos de porco para preparar o angu à baiana – prato típico da culinária brasileira – que alimentaria, horas mais tarde, os vizinhos que ajudavam a “bater a laje[3]”.
A luta que começou para ter acesso à água encanada e energia elétrica, passou por saneamento básico, demandas por equipamentos e serviços públicos e direitos para os moradores e que sempre teve como protagonistas as mulheres, ao longo dos anos. Como exemplo, podemos citar Eliana Sousa Silva, que foi a primeira mulher a se tornar presidente da Associação de Moradores, nos anos 1980 e até hoje, é engajada nas causas pautadas pelos moradores da Maré.
Com o passar dos anos, com o aumento populacional – atualmente são mais de 140.000 mil habitantes – e as novas configurações no território do Complexo da Maré, se faz necessário reinventar as lutas, cotidianamente, e ressaltar a potência que existe na favela para contestar o imaginário, no qual as áreas favelizadas e periféricas da cidade estão sempre associadas à violência. Nesse contexto, vivemos um grande problema: possuímos uma estrutura de equipamentos públicos (44 escolas, 7 posto de saúde, 2 postos do DETRAN – Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro , entre outros) que frequentemente tem seu funcionamento afetado pelas constantes operações policiais que acontecem na região. Essas intervenções policiais no território, culmina em graves situações de violações de direitos fundamentais. De acordo com dados do Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça, no ano de 2017, foram 45 dias que os postos de saúde tiveram o funcionamento interrompido e 35 dias sem aulas nas escolas da região.
Os ínfimos investimentos públicos e a atual política de Segurança Pública, pautada em uma política de combate e medo, ameaça os direitos duramente conquistados e cerceia o direito dos moradores de ir e vir, à educação, à saúde, ao lazer e sobretudo, o direito à vida, garantia fundamental e direito inviolável, previsto na Constituição Federal de 1988.
Diante disso, as mulheres enquanto protagonistas, mais uma vez têm reinventado suas lutas na busca por garantias de direitos, principalmente no campo da Segurança Pública. Ainda de acordo com os dados produzidos pelo Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça, cerca de 82% das demandas do ano de 2017, que denunciaram casos de violações de direitos por agentes do Estado, atendidas pelo Projeto Maré de Direitos[4], foram realizadas por mulheres, que vivenciaram algum tipo de violência e mães, companheiras e familiares, que denunciaram violações que aconteceram aos seus filhos, companheiros e familiares.
Muito além destas violências, ainda há o adoecimento físico e mental que as atingem diariamente, que não pode ser calculado; mas sentido e traduzido em ações que visam melhorar as condições de vida na favela. A propagação dos saberes e das experiências nos espaços onde estas mulheres ocupam é de grande importância para o fortalecimento e disseminação de mudanças para o território que impactam diretamente em transformações políticas.
Mais um exemplo de protagonismo feminismo foi Marielle Franco, nascida e criada na Maré, que decidiu se engajar na política quando perdeu uma amiga, vítima de bala perdida. Marielle se tornou vereadora em 2016 – a candidata mulher mais votada para a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro naquele ano – foi brutalmente assassinada aos 38 anos de idade e não teve a chance de chegar aos cento e nove anos de idade como Dona Orosina, outro exemplo, uma das primeiras moradoras da Maré, que presenciou as grandes transformações na favela e transformou sua memória em livros. Essas mulheres nos orgulham e nos inspiram e acima de tudo nos encorajam a continuar a jornada e aguçam em nós vontade maior em cobrar do poder público que se faça presente e não seja ele o aniquilador de direitos.
Neste sentido, é fundamental discutir e ampliar os estudos sobre os impactos das violências decorrentes da chamada Guerra às Drogas para as mulheres, sobretudo negras e moradoras de favelas. Compreender como essas dinâmicas de violência afetam as mulheres e reconhecer seu protagonismo nas lutas pelo direito à Segurança Pública na favela é urgente frente ao cenário de violência que temos vivenciado nas favelas e periferias da cidade. E que mais Franciscas, como minha vó, Orosinas, Marias e Marielles estejam presentes – hoje e sempre – e continuem nos inspirando.
[1]Fernanda Viana tem 38 anos e é moradora da Nova Holanda.Uma, dentre as dezesseis favelas que compõem o Complexo da Maré. É estudante do curso de Serviço Social e estagiária no Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça, da Redes da Maré.
[2]Escola de samba tradicional da comunidade, desde 1974. Hoje em dia, conhecido como Gato de Bonsucesso.
[3]Costume entre os moradores de favelas e periferias, no qual os vizinhos ajudam na construção das lajes das casas.
[4]Projeto em funcionamento desde 2016, que realiza atendimento sociojurídico gratuito para os moradores da Maré. O projeto faz parte do Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça, da Redes de Desenvolvimento da Maré.
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